Quinn, da seleção feminina de futebol canadense, e Nikki Hiltz, corredora estadunidense. Fotos: Instagram
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A presença de atletas trans e não-binárias nos Jogos Olímpicos de Paris

A luta de box entre a argelina Imane Khelif e a italiana Angela Carini, nas Olimpíadas de Paris, na última quinta-feira (1º ago.), durou apenas 46 segundos. Isso porque Carini desistiu após ser atingida no rosto pela adversária.

“Eu senti uma dor severa no meu nariz, e com a maturidade de uma boxeadora, eu disse: ‘Chega’, porque eu não queria, não queria, eu não conseguia terminar a luta”, justificou a italiana.

Na internet, no entanto, o episódio logo reverberou com uma série de fake news e ataques a pessoas intersexo e trans nos esportes.

Imane Khelif é intersexo. Em 2023, ela foi desclassificada de um campeonato mundial pela Associação Internacional de Boxe por não passar no teste de gênero exigido pela organização: os níveis de testosterona estavam mais altos do que o permitido. Naquela ocasião, o presidente da entidade, Igor Kremlev, justificou a desclassificação com discurso transfóbico.

O episódio voltou à tona, disseminado por políticos de extrema-direita, para espalhar informações erradas e atacar a representatividade nos esportes. A Diadorim explica o que ocorreu e quais são as regras para a presença de atletas trans nas Olimpíadas.

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Os Jogos Olímpicos de 2024 contam com um número recorde de mais de 190 atletas LGBTQIA+, de acordo com um levantamento feito pelo site OutSports. No entanto, apenas duas pessoas dessa lista são trans ou não-binárias: Nikki Hiltz, do atletismo dos Estados Unidos, e Quinn, do futebol canadense.

O desafio de aumentar a representatividade de pessoas trans no maior evento esportivo do mundo se deve às novas regras da competição, que impuseram restrições severas às pessoas dissidentes de gênero. Atualmente, o Comitê Olímpico Internacional (COI) determina que cada federação global estabeleça suas próprias regras para a participação de atletas trans em suas respectivas modalidades.

Anteriormente, o COI tinha diretrizes que permitiam que atletas transgênero competissem se seus níveis de testosterona estivessem abaixo de 10 nanomoles por litro um ano antes de competir. No entanto, essa regra levou até mesmo mulheres cisgênero a serem banidas de eventos esportivos femininos devido a níveis naturalmente altos do hormônio.

Os opositores da inclusão de atletas trans alegam a existência de supostas vantagens das esportistas que passaram pela puberdade masculina sobre as competidoras cisgênero, devido ao efeito da testosterona em seus corpos, mesmo após a transição.

Do outro lado do debate, há quem afirme que não há vantagens incontestáveis e que o uso de hormônios femininos nivela as condições. Argumentam que banimentos generalizados só contribuem para a sub-representação de mulheres trans no esporte de elite.

O fato é: nos últimos três anos, vários órgãos esportivos têm se movido para restringir a inclusão de atletas trans — principalmente mulheres —, em meio a um crescente debate sobre em quais categorias elas devem competir.

Em março de 2023, a World Athletics Council proibiu mulheres trans de competirem em eventos femininos de elite se tivessem passado pela puberdade masculina, alegando a proteção da categoria feminina. Seguindo o exemplo, a World Aquatics impôs restrições semelhantes. A nadadora Lia Thomas contestou judicialmente essas políticas. 

Outros órgãos esportivos, como a União Ciclista Internacional e a World Rowing, também estabeleceram proibições rigorosas. Algumas federações internacionais exigem controle de testosterona ou avaliam a participação de atletas trans caso a caso, como a Federação Mundial de Badminton e a FIFA.

Uma das pessoas prejudicadas por essas restrições foi a halterofilista Laurel Hubbard, da Nova Zelândia, que fez história como a primeira transgênero a defender seu país nas Olimpíadas de Tóquio 2020.

O que diz a ciência sobre atletas trans?

Embora especialistas defendam a necessidade de estudar mais as diferenças fisiológicas e o impacto delas no desempenho de cada atleta, os resultados de levantamentos já realizados sobre o tema dividem opiniões.

Em abril deste ano, um estudo encomendado e financiado pelo COI revelou que as mulheres trans participantes da pesquisa apresentaram maior preensão manual (indicador de força muscular) e menor aptidão pulmonar, cardiovascular e de salto, em comparação com mulheres cis. A densidade óssea de ambas foi igual.

“Embora sejam urgentemente necessários estudos longitudinais sobre a transição de atletas transgêneros, esses resultados devem alertar contra proibições precaucionais e exclusões de elegibilidade esportiva que não sejam baseadas em pesquisas específicas ou relevantes para o esporte”, escreveram os pesquisadores em sua conclusão.

Em 2021, outro estudo, da Loughborough University, na Inglaterra, descobriu que a terapia hormonal reduziu a força, a massa corporal magra e a área muscular em mulheres trans após 12 meses, mas os níveis gerais ainda permaneceram mais altos do que os das mulheres cis após três anos.

A polêmica é ainda maior porque a proibição ou restrição à participação de atletas trans em competições ultrapassou as questões esportivas e também virou pauta político-ideológica. 

No Brasil, deputados estaduais com pouca ou nenhuma atuação no campo dos esportes propuseram pelo menos 16 projetos de lei a favor do banimento de pessoas trans de competições, entre 2019 e meados de 2022, de acordo com levantamento da Agência Diadorim.

Em março de 2019, o caso da jogadora de vôlei Tifanny Abreu, que é uma mulher trans, voltou à tona após o vazamento de um comentário transfóbico dirigido à atleta durante uma partida da Superliga Feminina. 

Do mês seguinte até março de 2020, parlamentares protocolaram 13 dos 16 PLs sobre o assunto. O movimento foi iniciado com a apresentação do projeto do deputado Altair Moraes (Republicanos) na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), que prevê multa de até 50 salários mínimos (R$ 82 mil, atualmente) a federações ou clubes que não adotem o sexo biológico como definidor de gênero.

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