‘Não existe vida separada da natureza’: a arte ecotranstravesti de Lyz Vedra
Exposição “Escuta Sensível das Plantas”, em cartaz no MAC-CE, é importante local de reflexão sobre a emergência climática
Na exposição “Escuta Sensível das Plantas”, em cartaz no MAC-CE (Museu de Arte Contemporânea do Ceará), a artista e pesquisadora cearense Lyz Vedra, 28 anos, tece uma conexão entre sua identidade travesti e a natureza vegetal das plantas.
“Travestis e plantas estão excluídas daquilo que se considera uma vida que deve ser cuidada, preservada e ouvida”, afirma a artista. Através de uma experiência imersiva, ela convida o público a refletir sobre os impactos do projeto colonial sobre a vida no planeta. A exposição reúne vídeos, fotografias e desenhos, além de uma instalação sensorial com terra, onde os visitantes podem caminhar descalços.
Lyz nasceu em Fortaleza e cresceu no território de Maracanaú, cidade da Região Metropolitana da capital cearense. Após a graduação em Dança pela Universidade Federal do Ceará, a artista ingressou no Programa de Pós-graduação em Artes do Instituto de Cultura e Arte da mesma instituição.
Em entrevista à Diadorim, ela conta que começou a se interessar pela arte ainda na infância, influenciada pelos pais — um artesão e uma professora, ambos da região do Vale do Jaguaribe, interior do estado.
AGÊNCIA DIADORIM — Como você se aproximou da pesquisa em Artes?
LYZ VEDRA — Desde muito cedo, me interessei por arte, mais especificamente o desenho e a pintura, habilidades e sensibilidades herdadas de meu pai artesão e de minha mãe professora. Distante das oportunidades e vivendo em uma cidade que não se preocupa com o valor cultural, só consegui me desenvolver poética-artisticamente plenamente através da graduação em Dança da Universidade Federal do Ceará. Com a dança ocupando lugar de criação e pesquisa em disciplinas e bolsas de pesquisa, consegui atuar mais intensamente no circuito artístico da cidade de Fortaleza, através de trabalhos cênicos, residências e performances que eram parte das programações dos equipamentos culturais públicos da cidade.
Por meio da pesquisa acadêmica em Artes, encontrei um mundo de perspectivas de produção de conhecimento, compartilhando minhas pesquisas ativamente em eventos, congressos e apresentações. Foi nesse percurso que despertei meu interesse pelas plantas, no mesmo momento em que despertei para o processo de transição de gênero, reconhecendo-me travesti. Acumulei investigações em torno de temáticas que partem do eixo corpo-arte-natureza, chegando atualmente ao Mestrado Acadêmico em Artes da UFC, com uma pesquisa que aprofunda questões relacionadas à sobrevivência, transfeminismo, ancestralidade, corpo e imagem.
DIADORIM — Quando nasceu a exposição “Escuta Sensível das Plantas”?
LYZ — A exposição é resultado de uma pesquisa extensa de minha autoria enquanto artista-pesquisadora. O título “Escuta Sensível das Plantas” também dá nome a uma abordagem somática, que propõe trabalhar estados de corpo integrais na busca por uma diluição da razão vigilante, tornando possível uma maior disponibilidade à experiência em sintonia com as plantas.
A expografia, por sua vez, é pensada como uma mediação sensível das ações ecoperformativas que as obras elaboram. Ela apresenta o recorte de uma trajetória de pesquisa e criação em artes, propondo diálogos por meio do atravessamento entre corpo, imagem, som, dança e ancestralidade, a partir do paradigma de uma sobrevivência ecotranstravesti.
DIADORIM — O líder indígena Ailton Krenak recusa a ideia de humanidade como algo separado da natureza. Como você vê essa fusão?
LYZ — Na realidade, o que estamos vendo no mundo inteiro em termos de catástrofes ambientais é fruto de uma estrutura de poder baseada na concepção de mundo em que o humano — e esse humano é homem, branco e europeu, pautado pela racionalidade e pelo racismo — ocupa única e exclusivamente o lugar de fala universalizante da experiência existencial. Portanto, a própria concepção de humanidade está equivocada porque não admite as infinitas maneiras de existir. Essa concepção precisa ser urgentemente revista, afinal, foi justificado nesse mesmo ideal que o processo nefasto da colonização aconteceu. Nesse sentido, é urgente aprender com os conhecimentos ancestrais e dissidentes, que não existe vida separada da natureza, que a noção de indivíduo é uma grande mentira e que somos todos partículas que constituem um todo interdependente e ecodependente.
DIADORIM — Na sua obra, você fala em uma vivência ecotranstravesti. Pode nos explicar o termo?
LYZ — Esse termo é uma espécie de conceito que norteia a compreensão de um estado de corpo, ou seja, um modo de existir, de estar no mundo em transição, que dentro da minha experiência é travesti, em sintonia constante com a natureza, mais especificamente com as plantas. Nesse caso, desenvolvi uma prática de pesquisa que tem o corpo e a sensibilidade como elemento central das reflexões e elaborações de pensamento, unindo produção de conhecimento, processo de criação em artes e protagonismo autobiográfico.
DIADORIM — O que essa exposição no MAC-CE representa para você e sua carreira?
LYZ — Esse é um momento histórico, não só para a minha carreira, mas, sobretudo, para a arte transgênero cearense. No início, foi difícil acreditar que uma pessoa como eu poderia ocupar um pavilhão do Museu de Arte Contemporânea do Ceará com uma exposição individual. É algo verdadeiramente forte porque, ao mesmo tempo em que isso está acontecendo, para muitas de nós, o simples ato de pisar na rua e tentar ocupar os espaços públicos ou privados é uma atitude arriscada.
De fato, pessoas trans, travestis e não-binárias não conseguem exercer o direito de ir e vir plenamente, porque somos corpos indesejados. Existe uma cultura extremista de exclusão e violência contra as nossas vidas e, por isso, estar ocupando um museu com a importância do MAC, com obras, filosofias e perspectivas de mundo de minha autoria é um ato de afirmação de vida muito grande, de afirmação de que não vamos desistir de viver e, mais que isso, não vamos deixar de cultivar nossas experiências e compartilhar as nossas perspectivas de mundo, seja qual for o suporte ou contexto social. Nós estamos vivas. Queremos dignidade e respeito à nossa existência transgressora e não aceitaremos morrer.
“Escuta Sensível das Plantas”
O que: exposição de Lyz Vedra, curadoria de Lucas Dilacerda
Onde: Museu de Arte Contemporânea do Ceará (r. Dragão do Mar, 81, Praia de Iracema, Fortaleza.
Quando: até 28 de julho.
Quanto: entrada gratuita