Filipe Catto em show no Primavera Sound, em São Paulo, em 2023. Foto: Reprodução/Facebook
Filipe Catto em show no Primavera Sound, em São Paulo, em 2023. Foto: Reprodução/Facebook
cultura

‘Mãe de todas nós’: Filipe Catto canta Gal, diva que inspirou sua transição de gênero

Cantora apresenta show de novo disco no Psicodália, na região serrana de Santa Catarina

“Belezas São Coisas Acesas Por Dentro” foi eleito um dos melhores discos nacionais de 2023 por revistas especializadas como Rolling Stone e Gama – e não é à toa. Filipe Catto interpreta músicas consagradas na voz de Gal Costa com originalidade e uma boa dose de rock n’ roll, incorporando “a cantora diva que sempre quis ser”.

Ao longo de 15 anos de carreira, o público pôde acompanhar de perto as diversas transformações de Catto, que hoje se autodeclara pessoa trans não binária. Em entrevista à Diadorim, a artista conta que encara sua trajetória artística como um processo de amadurecimento e autoexpressão. No palco, ela aprendeu a enfrentar as disforias em relação ao próprio corpo e a se sentir segura vestindo a própria pele.

Esse processo de libertação fica evidente na “viagem visual” de “Belezas São Coisas Acesas Por Dentro”, disponível no YouTube. Enquanto dança, Catto hipnotiza o público com uma sensualidade que transcende as limitações do binário de gênero. 

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Prestes a se apresentar no Psicodália, a “woodstock” sulista que volta com tudo após quatro anos de hiato, a cantora celebra a oportunidade de homenagear Gal Costa e exalta os artistas LGBTQIA+, que em sua visão produzem o que há de mais “sofisticado” na cena musical brasileira. 

O evento de música independente será realizado entre 8 e 14 de fevereiro, em Rio Rufino, uma cidade com cerca de 3 mil habitantes localizada na serra catarinense. A nova casa do Psicodália é uma fazenda de 500 mil m², dos quais 70% são de mata nativa preservada, circundada por rios e lagoas. Os ingressos estão à venda aqui.

DIADORIM — O seu processo de transição de gênero nos parece totalmente entrelaçado à sua música. Como tem sido a experiência de se apresentar ao público como uma pessoa não binária?
FILIPE CATTO — Pra mim, me apresentar pro público como uma pessoa não binária é muito reconfortante, na verdade. Eu sinto que a minha trajetória nesses 15 anos de trabalho, de música, foi muito ligada à minha afirmação de gênero. Acho que todo o meu processo artístico, na verdade, veio contar isso. Foi uma maneira também de eu poder me expressar e tirar de dentro de mim coisas muito, muito profundas, e fazer isso diante do público. Acho que a cada disco eu fui tirando uma camada, fui revelando uma nova ideia minha e hoje eu me sinto uma pessoa amadurecida, pronta e muito segura da minha não binariedade. Gosto muito das relações que construí com as pessoas através da conexão com a música, e o meu público foi de uma generosidade, de um carinho, de um acolhimento que realmente fez toda a diferença dentro desse processo. É muito profundo e é muito doloroso, mas também é cheio de beleza e cheio de potência. Eu acho que poder ser o que eu sou hoje é fruto desse encontro com as pessoas e tudo de mais lindo que elas puderam me oferecer.

“O Brasil é um país muito contraditório. Então, à medida que a gente foi tendo essa revolução toda e um grande avanço nas pautas LGBTQIAPN+, a gente viu o retrocesso e uma resistência, um embate mesmo em relação a isso.”
Felipe Catto, cantora

DIADORIM — Você já disse que o Brasil passou por uma “revolução queer” nos últimos dez anos. Que revolução é essa? Você se considera uma filha da revolução?
FILIPE CATTO — Eu acho que o Brasil é um país muito contraditório, então, à medida que a gente foi tendo essa revolução toda e um grande avanço nas pautas LGBTQIAPN+, a gente viu o retrocesso e uma resistência, um embate mesmo em relação a isso. Acho que a gente está num momento de embate, e que é um momento de se posicionar, é o momento de a gente colocar as nossas coisas ali no front e ser absolutamente o auge de quem a gente pode ser. Eu acho que a gente não pode se amedrontar com esses tempos e ficar refém desse pensamento retrógrado. O que eu sinto é que andando pelo mundo e conhecendo as cenas e as coisas todas que estão acontecendo, o Brasil, de fato, tem um núcleo artístico LGBTQIAPN+ que é extremamente poderoso. A gente tem representantes da nossa comunidade em lugares de muito poder, sabe, apesar de ainda estarmos engatinhando em muitos aspectos. Eu tenho muito orgulho de ver o quão relevantes esses artistas são, essas artistas são, e o tamanho da contribuição que essa galera está dando pra cultura do Brasil. Acho que o que tem de mais sofisticado, o que tem de mais propositivo e moderno dentro das linguagens artísticas no Brasil, vem da nossa comunidade, e sempre veio da nossa comunidade. Acho que só agora a gente também está podendo assinar embaixo e conclamar o que é nosso. A gente está lutando por esse reconhecimento, se unindo e multiplicando essa potência em vários aspectos.

DIADORIM — Em 2018, após dizer que Jesus era travesti, Johnny Hooker foi alvo de notícia-crime em Garanhuns, durante um festival do qual você também participou. Pouco depois, Bolsonaro (PL) foi eleito. De que forma esses eventos reverberaram em você? Você percebeu alguma mudança no cenário político para artistas progressistas durante o primeiro ano do novo governo Lula (PT)?
FILIPE CATTO — Eu sinto que esse primeiro ano do governo Lula está sendo um ano de botar as coisas em ordem. A gente passou, de fato, por um momento extremamente tenebroso, dramático, triste, preocupante. Foram anos em que a gente estava muito tenso, que as nossas oportunidades de trabalho ficaram escassas. A gente teve que trabalhar com muita dificuldade. Então, ainda falta muito pra gente poder dizer que estamos num espaço normal de cultura. Acho que isso está sendo construído agora, está sendo reconstruído. Mas como é um primeiro ano, acho que isso ainda é muito… A gente ainda está tentando reverter o estrago que foi feito anteriormente. Pra mim é isso. Eu tô muito aliviada de saber que a gente tem pessoas maravilhosas como a [ministra da Cultura] Margareth Menezes trabalhando pela cultura, e a [deputada federal] Erika Hilton [PSOL-SP] no Congresso. Se uma Erika Hilton já faz tudo isso, imagina quantas Erikas precisam estar ali e estarão ali no futuro. A gente está trabalhando para construir algo para frente, e por enquanto também podendo respirar um pouco e se preocupar com outras coisas que não a sobrevivência, como a gente estava se preocupando até agora.

Filipe Catto em show no Primavera Sound, em São Paulo, em 2023. Foto: Reprodução/Facebook

‘Belezas São Coisas Acesas Por Dentro’, de Catto, foi eleito um dos melhores discos nacionais de 2023 por revistas especializadas.

Foto: Reprodução/Facebook

DIADORIM — Você declarou à Rolling Stone, em 2022, que se tornou “a cantora diva que sempre quis ser”. O quanto essa diva é inspirada pelo ícone bissexual Gal Costa, de quem você tem bebido artisticamente?
FILIPE CATTO — Essa diva é totalmente filha da Gal Costa, porque acho que a Gal Costa é mãe de todas nós, né? A Gal Costa é um símbolo, é uma entidade mesmo, sabe? De feminilidade, de atitude, de poder, de rock’n’roll. É uma mulher que quebrava regras, que propunha o novo. Ela sempre foi uma pessoa muito moderna. Eu acho que é isso que sempre me atraiu na Gal Costa. Eu sou muito inspirada pela Gal, assim como eu sou muito inspirada por todas as divas do rock, que sempre me construíram, como a Chrissy Hines, como a Alanis, a PJ Harvey, Maria Bethânia, Elis. Eu sempre vejo essas mulheres como a Maísa, essas cantoras assim muito “fodonas”, como ícones do rock n’roll, porque eu acho que o rock n’roll não é somente um estilo musical, mas é uma posição de vida. É uma desobediência. E essas artistas femininas que me construíram e me transformaram na artista que eu sou hoje foram totalmente desobedientes. Esse é o meu mantra para a vida.

DIADORIM — Desde “Saga” [música lançada por Catto em 2009], você tem um compromisso com músicas que cantam amores, dores e voltas por cima – e por aqui acreditamos que aquilo que nos sensibiliza e humaniza também é político. Como isso conta sobre suas vivências enquanto pessoa questionadora do binarismo de gênero?
FILIPE CATTO — Eu acho que o amor é um grande tema para mim, na minha história, porque como uma pessoa trans não binária, esse conflito interno dentro de mim sempre foi uma coisa que transbordou nas minhas relações, acho que as minhas relações sempre foram portais para eu me entender, para eu também me encontrar, o outro para mim é um espelho onde a gente está buscando alguma coisa, quando tu te apaixona por alguém, tu está te apaixonando por uma possibilidade de si mesma diante daquela pessoa que está ali, então é muito bom, é muito maluco poder expressar meus questionamentos, minhas frustrações e o meu desejo de ser amada e compreendida, eu acho que isso sempre foi uma coisa que eu senti e hoje eu me sinto um pouco mais empoderada desse espaço afetivo, porque eu também percebi que existe um amor dentro de nós que é o amor que a gente dá para nós mesmas, os limites que a gente impõe para os outros através desse autoamor. A gente não pode nunca se abandonar. E eu, de fato, já passei por muitas experiências, mas sempre o que esteve ali, que me salvou até nos momentos mais obscuros, foi uma sensação de valor próprio que nunca eu posso deixar de lado, sabe? E esse amor próprio é o que me leva a passar um batom e sair de casa para passear com o meu cachorro todos os dias, porque eu sei que eu vivo numa sociedade violenta. Não dá para dizer que é confortável estar na minha posição, mas ao mesmo tempo eu acho que é muito importante a gente se firmar, se colocar, vivenciar o mundo, experimentar o amor, as coisas todas que o amor proporciona. E ser a gente mesmo.

DIADORIM — Em “Belezas São Coisas Acesas Por Dentro”, fica nítido – pela sonoridade – o quanto o palco está no disco. O que o público pode esperar do show no Psicodália?
FILIPE CATTO — O “Belezas” era um show antes de ser um disco, então ele estreou como um espetáculo no palco e quando a gente foi levar ele para o estúdio, a gente simplesmente gravou ao vivo o que já estava fazendo. Então ele tem mesmo essa cara de ser um disco ao vivo. Eu gosto muito porque traz uma naturalidade, uma espontaneidade para as músicas que eu acho super positivas. Eu sempre me encantei muito por esse tipo de produção musical e de sonoridade. Então é isso. O Belezas é um retrato daquele momento. Ele é um disco que é uma foto, um instantâneo daquele momento, daquele dia. A gente foi para o estúdio e gravou em dois dias, quase tudo. Foi um trabalho feito de uma forma muito natural. A beleza é assim. Eu acho que a beleza não precisa de artifícios. A beleza é acesa por dentro, ela é o que a gente tem para oferecer de verdade. E é por isso que esse disco, esse show, é tão mágico.

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