Linn da Quebrada no BBB: ‘entre o fundo do poço e a profundidade do posso’
Para pesquisador, a presença de Linn da Quebrada no Big Brother Brasil contribui demais para a tal representatividade que muito do público quer que aconteça
“Linn da Quebrada está cotada para o Big Brother Brasil 2022.” Quando ouvi este anúncio num programa de fofoca, pensei que fosse mais um boato. Só que não. Lina Pereira, que já foi (e continua sendo, como gosta de dizer) a Linn da Quebrada, está confirmadíssima para a edição do maior reality show do país. Qual foi o meu susto? A bixa travesty da quebrada mais questionadora dos últimos tempos participando do milionário investimento publicitário da TV Globo? Como assim, Bial? E aí? Representatividade tem limite?
De menino interiorano testemunha de Jeová, chamado Lino, a ajudante de cabeleireira e estudante de teatro, passando pelo mundo do funk e da experimentação com o corpo como a artista Linn da Quebrada, até se tornar a Lina Pereira, travesti mais reflexiva sobre as questões de gênero que esse país já viu, muita coisa aconteceu (e vem acontecendo!) na vida dessa nova participante do BBB.
Terrorista de gênero, como gosta de ser chamada, Linn começou a ganhar destaque na mídia nacional como a funkeira que criava canções e fazia clipes delas para interrogar as normas de gênero e sexualidade responsáveis por oprimir e enquadrar nossas vidas. Suas letras são combativas à heteronormatividade e tratam da liberdade ao corpo, da possibilidade de uma sexualidade fluida, rechaçando o machismo e valorizando a travestilidade.
Aclamada a princípio pelo público LGBTI+, Linn se tornou conhecida nas plataformas digitais de audiovisual e no cenário alternativo de música brasileira. Teve sua vida retratada no premiado documentário “Bixa Travesty”, até chegar ao mainstream televisivo, quando atuou na série de TV “Segunda Chamada” (Globo) e ganhou o programa de entrevista “Transmissão” (Canal Brasil), que comanda em parceria com Jup do Bairro. Da mesma forma que em sua trajetória pessoal, a jornada profissional de Linn é repleta de mudanças de perfis, que ela mesma considera o fluxo comum da vida.
Mas, a despeito de tais características, Linn da Quebrada é hoje conhecida como uma das mais decoloniais filósofas brasileiras não acadêmicas, tendo sua poética e seu pensamento discutidos na universidade e nas ciências, como maneira de compreender a performatividade do corpo para fabricar quem nós somos. Sem perceber que seu pensamento dialoga com importantes teorias feministas produzidas por acadêmicas no mundo inteiro, Linn tem representado a ponta de lança no que há de mais agudo e requintado em termos de reflexão sobre a existência humana e a constituição das identidades a partir da experiência que o corpo tem com o local em que vive.
O debate que Linn instaura sobre esses temas não é feito por ela na escrita de textos eruditos, mas na pele de suas canções que veio lançando em dois álbuns musicais ao longo dos últimos anos: “Pajubá” e o recente “Trava Línguas”. Estes compõem duas preciosidades que servem de caminho para essa artista enunciar a sua palavra afiada crítica sobre os padrões importados e normativos de gênero, sendo complementados pelas inúmeras falas em entrevistas que ela concede e que são facilmente assistidas em diferentes programas da plataforma YouTube. E é no contexto de sua música e de sua voz nessas entrevistas que Linn fala de temas como gênero, sexualidade, corpo e subjetividade sob a sua própria experiência.
Insólita experiência
É nessa linha de entendimento da vida humana, que Linn assume como essencial o papel da linguagem – da palavra, do gesto, da voz – e, assim, defende que pela semiose podemos criar novas possibilidades de estar no mundo e de produzirmos nossas identidades. Entretanto, também para Linn, a questão é: Que identidades são produzidas e não conseguem viver por que esbarram nas estruturas que as entendem como inadequadas? Dentre todos os caminhos identitários, está o seu próprio: o de ser alguém que não foi computado pelo sistema tradicional de sexo-gênero, ou, como ela mesma diz, o de ser uma falha.
E como essa falha se encaixará num programa de TV, de uma emissora, inserida num país e numa cultura tão marcados pelo binarismo de gênero, sexo, sexualidade e corpo, suas normas e seus efeitos na vida das pessoas? Eis a pergunta central. Quem assistir ao programa verá. Será que, lá dentro da “casa mais vigiada do Brasil”, Linn da Quebrada vai ser uma porta-voz das vidas que não se alinham à cultura dos corpos dicotômicos? Muitas pessoas esperam essa representatividade por ela.
Dentre as agruras que viveu – de uma criança pobre, que sofreu muita discriminação por seu jeito afeminado, entre outras coisas –, Linn também foi vítima de um câncer, o que lhe fez pensar ainda mais no limite da vida humana e nos limites de vida digna que nos perpetram. A experiência com o medo, a dor e o preconceito tornaram-se força motriz para Linn se jogar sem rede de proteção na estrada do viver. O Big Brother é um aquário de manipulação da psique humana e um espaço de espetacularização em prol do vil metal. Linn da Quebrada, mais do que muita gente, sabe bem disso e pode, no interior desse próprio sistema, questionar as repressões que ele gera. Como no filme e nos discos, certamente o BBB será mais um espeço de autoconhecimento para Linn.
Pode ser que ela não responda ao que muito do seu público quer ver: a Linn militante 24 horas por dia – verborrágica, com o script pronto para lutar contra a transfobia. Linn é humana, gente, de carne e osso, com os limiares que qualquer pessoa tem. Pode errar, sofre e inclusive luta para evitar alguma romantização sobre sua vida. No entanto, a presença de Linn lá no programa, a própria existência de Linn e a coragem dela de ter se dito um dia Linn da Quebrada… tudo isso contribui demais para a tal representatividade que muito do público quer que aconteça.
Além do mais, a Lina Pereira (nome que Linn vem adotando no âmbito privado hoje) sabe das fissuras que a ocupação de seu corpo num espaço como aquele pode provocar. Na disputa de narrativas entre os valores sustentados por uma empresa como a Globo e a vida e as bandeiras que defende Linn/Lina, queremos e precisamos de mais personagens como ela nos espaços de poder, para, assim, desmantelá-los ao questionarmos, dentro deles mesmos, para que servem.
Ela própria afirma que seu sucesso demonstra um fracasso do sistema. Por que será? Linn sabe que sua visibilidade fragmenta o limite da representatividade, porque ela conhece bem a diferença entre “o fundo do poço e a profundidade do posso”, como já declarou em entrevista. Linn desorganiza a lógica de que existe local para umas pessoas e não para outras, por isso pessoas pesquisadoras como eu, que se debruçam sobre o pensamento e o discurso de Linn da Quebrada, já estão ansioses para saber como essa moça que diz ser hoje completamente diferente apesar de ter se mantido a mesma vai lidar com os paredões dessa insólita experiência.
Iran Melo
Linguista, professor da UFRPE (Universidade Federal Rural de Pernambuco), diretor do Observatório Brasileiro de Linguagem Inclusiva de Gênero e pesquisa o discurso de Linn da Quebrada.