A cacica trans MAjur, com blusa rosa e short verdade, no primeiro plano. Atrás, areia da praia e, mais ao fundo, casas e vegetação.
Majur Traytowu na beira-mar de Serra, no Espírito Santo. Foto: Rafael Ciscati/Acervo Fundo Brasil
LGBTIfobia

Primeira cacica trans, Majur só enfrenta preconceito quando sai da aldeia

Liderança do povo Boé Bororo, Majur Traytowu conta que seu povo respeita sua identidade de gênero; o que lhe tira o sono são as invasões de madeireiros à terra indígena

Esta reportagem é uma republicação do portal Brasil de Direitos

Passava pouco das 9h de uma manhã de sábado e, por do prato de ovos mexidos, a cacica trans Majur Traytowu, do povo Boé Boro, mal desviava o olhar da tela do celular. “Uma colega me convidou para visitar uma aldeia tupiniquim aqui perto”, explicou, abrindo um sorriso largo, enquanto digitava uma mensagem. “Será que eu posso ir? Parece que a gente tem bastante coisa pra fazer hoje de manhã.”

Dali a alguns minutos, começaria o último dia de debates do 1º Encontro Nacional de Travestis e Transexuais Defensoras de Direitos Humanos. Organizado pela Associação Gold, uma organização capixaba, o encontro ocorreu em um hotel à beira-mar na cidade de Serra, no Espírito Santo. Reuniu ativistas, pesquisadores e políticos eleitos. A ideia era planejar – e propor ao poder público- medidas que garantissem a atuação segura de pessoas trans que defendem direitos.

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A questão é delicada para o Brasil. Há pelo menos 14 anos, o país desponta como aquele que mais mata pessoas trans e travestis no mundo. Um levantamento realizado pelas ONGs Justiça Global e Terra de Direitos constatou que, em 2022, pessoas defensoras de causas LGBTQIA+ estiveram entre as mais ameaçadas no país. No ranking de assassinatos, ficaram na segunda posição, atrás daquelas que atuam em pautas relacionadas à terra e território: caso dos grupos que lutam por reforma agrária e dos ativistas indígenas. 

Aos 32 anos, Majur é uma ativista indígena que defende os direitos LGBTQIA+. Sofre, por isso, uma dupla pressão. Brinca que assumiu o cacicado a contragosto. Teve que substituir o pai, já idoso. “Eu não queria ser cacica porque sabia que era um trabalho muito pesado, uma responsabilidade muito grande”, disse. “Duas tias minhas são cacicas, e eu acompanhava a correria”. 

Cabelos lisos muito negros, franja cortada no meio da testa, top cor de rosa e certo gosto pelas redes sociais: não demorou muito para Majur se notabilizar como a primeira cacica trans do Brasil.  Desde então, ela viajou pelo país, dando palestras e concedendo entrevistas. O que ela acha de toda essa atenção? “Acho normal”, contou, meio divertida com a pergunta. “As pessoas não conhecem a realidade do meu povo. Faz sentido que se interessem”. 

Durante o encontro em Serra, Majur participou da mesa encarregada de analisar os desafios enfrentados pelas pessoas trans. “Vivi sempre na aldeia. Só sofri preconceito [por ser trans] ao sair de lá. Fui discriminada inclusive por outros indígenas”, disse. “Hoje, meu principal desafio são os madeireiros e caçadores ilegais que invadem nosso território”.

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Depois de tomar o café naquela manhã de sábado, Majur decidiu passear na praia em frente ao hotel. Fazia sol pela primeira vez em três dias e, até ali, a cacica não tivera tempo de pisar na areia. É uma situação comum nas ocasiões em que viaja a trabalho. “Às vezes, a gente nem sai do hotel, né?”, disse, antes de deixar os chinelos um canto e correr para molhar os pés no mar. 

Desde que assumiu o cacicado, Majur conta que se concentrou em levar infraestrutura nova para a aldeia. Na Apido Paru, moram cerca de 80 pessoas. Mas o número, diz ela, pode variar, visto que os Boé Bororo migram com frequência. “Dou meu máximo para ajudar todo mundo”, afirmou. “Logo que a gente chegou na aldeia, passamos muito perrengue. Mas já conseguimos estrada, energia elétrica, poço, uma caixa d’água de 15 mil litros. Ficou muito bom”. 

O problema que lhe tira o sono é aquele para o qual ela não tem solução simples: a entrada de não-indígenas no território. Nos últimos anos, contou, cresceu o número de madeireiros ilegais e caçadores na Terra Indígena (TI) Tadarimana. Quando percebem a presença de um grupo, os indígena comunicam a Funai. Com os invasores, aumentou também a circulação de álcool e drogas. 

A vibração do celular interrompeu a conversa: chegara a confirmação de que ela poderia conhecer a aldeia próxima do hotel. Caprichosa, decidiu voltar para o quarto, para se aprontar. Majur estava feliz: na semana anterior, a cacica trans fizera a retificação dos seus documentos civis, e decidira começar o tratamento hormomal. “Meus documentos chegam em 30 dias”, contou, satisfeita. Agora, ela é Majur de papel passado.

O chamado para ser cacica

Majur Traytowu nasceu na TI Tadarimana, no Mato Grosso. Ao longo dos anos, sua família migrou de aldeia em aldeia, segundo os costumes de seu povo. “Somos assim, meio nômades”, contou. Quando ela tinha 27 anos,sua família decidiu fundar a aldeia Apido Paru, da qual seu pai tornou-se cacique. Àquela altura, Majur já se acostumara a se envolver nos rumos políticos da comunidade. Todas as grandes decisões ficavam à cargo de um triunvirato formado pelos pais e por ela. “Eles opinavam e, depois, vinham me consultar” disse Majur que, não raro, dava o voto de Minerva. 

Hábil com o português, ela também acompanhava o pai nas conversas com não-indígenas. Quando a saúde do pai vacilou, Majur foi chamada a assumir seu lugar. “Foi minha irmã quem apontou: ‘o pai está mal, melhor você assumir o cacicado”. Ela aceitou. 

Tinha 30 anos e, há mais de uma década, já sabia que tinha “um espírito de mulher num corpo de homem”. Majur conta que seu processo de transição de gênero foi o mais tranquilo possível. Aos 12 anos, ela percebeu que não se identificava com os outros meninos. “Eu não tinha internet ou filmes para me informar sobre o que sentia”, lembrou. Mas ela tinha com quem conversar — na TI Tadarimana, havia outra mulher trans, que a estimulou a afirmar sua identidade de gênero. Ela foi bem aceita pela família. “Minha mãe sempre se preocupou muito comigo. Temia que eu bebesse em festas, arrumasse briga”, contou. “Sobre ser trans, ela sempre foi de boa. Mas ficou com medo do que o mundo faria comigo”. 

A figura da cacica trans ficou conhecida fora da terra indígena por acaso. Em 2018, uma equipe de documentaristas foi até a aldeia Apido Paru entrevistar o pai de Majur. Encarregada pela comunicação de seu povo com os não-indígenas, Majur trabalhou como intérprete do pai. Surpresos com a moça, a equipe de filmagens quis saber se ele aceitaria virar tema de filme. “Falei: tá bom então. Mas vai ser um babado”.  

Àquela altura, Majur era o nome que ela usava nas redes sociais. Trata-se, ela explica, de uma inversão das sílabas de seu nome masculino: Ju-Mar. Foi com ele que Majur batizou o filme sobre seu cotidiano, lançado em 2018. Desde então, é com ele que se apresenta. 

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