O que aprendemos com as pessoas LGBTQIA+ refugiadas que ninguém vê
Os desafios para compreender as necessidades de uma população que é vulnerável, mas que não precisa ser salva nem transformada, apenas acessar ferramentas para viver dignamente
Há pouco mais de dois meses, nós da ONG Planeta de TODOS decidimos abrir a Casa Feliz, um novo conceito de moradia alternativa e inclusão social totalmente voltado para a comunidade LGBTQIA+ em Bogotá, na Colômbia. Até o momento, disponibilizamos oito vagas para pessoas imigrantes e refugiadas venezuelanas, e também vítimas dos ainda assoladores conflitos armados dentro do território colombiano.
Após seis anos trabalhando com jovens não acompanhados da família do sexo masculino (144 pessoas de 26 nacionalidade diferentes, ao todo) na Europa (Atenas e Roma) e atuando na integração social e laboral deles em um contexto bastante hostil, decidimos, como coordenação da ONG, que não só deveríamos voltar às nossas origens enquanto lationoamericanos, mas também oferecer as nossas ferramentas sociais — workshops de línguas, informática, busca de trabalho, etc. — para essa população que é, sem sombra de dúvidas, a mais marginalizada com a qual já pude trabalhar desde que assumi o desafio dado pelo vice-presidente do Cartão de TODOS, Tales Vilar, e também presidente da nossa organização. É a velha máxima de que, no final das contas, muito embora sejam as pessoas que moram em nossa casa as que usufruem do projeto, somos nós que fazemos o exercício diário de nos desprender de preconceitos. Sabem por quê?
Descobri que respeitar os pronomes é uma obrigação de todes ou tod@s, e que não podemos fazer pirraça gramatical enquanto existem pessoas que não se sentem representadas. Não pode ser considerado balela o fato de que uma pessoa se vê como um homem ou mulher, mesmo tendo nascido “diferente”, ou então que não se veja representado nem por um sexo, nem outro. Custaria realmente muito respeitar isso?
Descobri também que pessoas venezuelanas LGBTQIA+ vivem praticamente em uma Rússia sul-americana, onde a perseguição à comunidade é brutal, e que acabam sendo refugiadas três vezes: primeiro, fugindo da severa crise econômica que arruinou um dos países de natureza e recursos naturais mais completos do planeta, depois por perseguição política e, por último, pelo simples fato de pertencer à população LGBTQIA+.
Descobri ainda que o Pacto Histórico foi, sim, um grande avanço para a Colômbia, só que os conflitos armados e as guerrilhas ainda controlam muitos territórios pelo país. Pertencer a Guajira, por exemplo, é quase que uma sentença de morte se você for uma mulher trans. Já ser soropositivo em algumas regiões colombianas é motivo suficiente para que homens armados te expulsem do seu lar e para que você não seja mais bem-vindo em sua terra natal.
Descobri, aliás, que o contexto do refúgio pode ser amplamente interpretado e que, não necessariamente, uma pessoa não possa ser incluída neste espectro se o seu país não estiver em guerra ou se ela não estiver sendo perseguida por diferentes opiniões políticas ou religiosas, por exemplo. No Brasil, na Colômbia e acredito ainda que em muitos outros países e culturas, o fato de você iniciar uma transição hormonal e modificar o seu corpo — como você acredita que ele deva ser — já é o suficiente para uma expulsão em relação a seu núcleo familiar, por exemplo. Desse modo, assim como os milhares de refugiados com os quais já trabalhamos, essas pessoas LGBTQIA+ se encontram sozinhas em um mundo que as ignora.
Descobri também que este projeto é muito mais desafiador do que eu pensava, pelo simples fato de que essas pessoas, perseguidas e marginalizadas, criam um nível de sobrevivência mais elevado do que qualquer outro perfil com o qual já tive a oportunidade de trabalhar. E que é preciso paciência para que todes entendam que só a união e o senso de comunidade serão capazes de fazer este projeto funcionar de modo adequado. Afinal, é uma vida inteira por si só, contra apenas dois meses de projeto.
Descobri também que esta comunidade carece enormemente de serviços de saúde, e que a maioria, por exemplo, nunca se sentou numa cadeira de dentista, devido a outras prioridades, como sobreviver, por exemplo. É preciso escutar e, sobretudo, entender as suas necessidades nesse sentido, especialmente, na promoção de retrovirais para o controle do HIV e a saúde básica para evitar que a Aids, neste caso, se desenvolva e possa vitimar uma vida.
Descobri, sobretudo, que a pior coisa que a sociedade pode fazer é, com o dedo em riste, acusar integrantes da comunidade LGBTQIA+ de corroborarem com a prostituição. Alguém aí já parou para pensar que esse é o único modo de sobrevivência dessas pessoas, simplesmente pelo fato de terem seus direitos básicos de inclusão social sendo negados? Nós, como Planeta de TODOS, já começamos a capacitar noss@s residentes para trabalharem conosco. Estamos confiantes!
Descobri, por fim, que a comunidade LGBTQIA+ não precisa ser salva. Ninguém precisa ter a sua vida transformada. Isso é discurso publicitário de ONG. O que todes precisam, nada mais, é de um voto de confiança e ter acesso a ferramentas de inclusão social e laboral. Descobri que é extremamente fundamental que todos entendam, de uma vez por todas, que uma pessoa dessa comunidade que vende o seu corpo é porque não consegue encontrar outra maneira para fazer o básico: um teto para morar, um prato de comida para comer. Entenderam ou querem um desenho de um arco-íris?
André Naddeo
André Naddeo é diretor da ONG Planeta de TODOS há seis anos, jornalista de formação e paixão, com 20 anos em atuação por veículos, como UOL, Terra, MSN, Rede TV!, rádio El Espectador. Atuou no processo de acolhimento de venezuelanos em Boa Vista (RR) e desde o início de 2023 dirige o projeto "Casa Feliz" em Bogotá, Colômbia, voltado para LGBTQIA+s.