Em Pernambuco, maioria das candidaturas a governo ignora LGBTI+ nos seus planos
Dos 10 candidatos, seis não citam essa população nos seus programas; entre eles, a líder das pesquisas, Marília Arraes (SD)
Esta reportagem é uma parceria da Agência Diadorim com Marco Zero Conteúdo
Em Pernambuco, um dos estados brasileiros com maior índice de violência contra LGBTI+, seis dos 10 candidatos ao governo não citam essa população nos seus programas. É isso que aponta uma análise feita pela Agência Diadorim e a Marco Zero Conteúdo, com base nos documentos protocolados por cada candidatura no Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
A pesquisa Ipec divulgada na última quarta-feira, 21 de setembro, para o governo estadual mostra que a candidata Marília Arraes (SD) segue na liderança, com 33% das intenções de voto, cinco pontos percentuais a menos do que no levantamento anterior do instituto, divulgado no dia 6. Na segunda colocação, Danilo Cabral (PSB), Raquel Lyra (PSDB), Miguel Coelho (União Brasil) e Anderson Ferreira (PL) estão numericamente empatados, todos com 11%. A margem de erro da pesquisa é de 3,0 pontos percentuais para mais ou para menos.
Líder da corrida eleitoral, Marília Arraes não cita uma só vez a sigla LGBTI+ em seu plano de governo. Ela deixou de fora esse grupo até mesmo no trecho em que afirma “combater as desigualdades, especialmente aquelas estruturadas pelo racismo, o machismo e a discriminação de classe.” “Nosso estado será de todas as cores, de todas as pessoas! Igualdade de gênero, raça, direito à diversidade de pensamento e crença, serão tratados como garantias constitucionais, conquistas do estado brasileiro”, diz o texto da candidata.
Danilo Cabral, por sua vez, apoiado pelo atual governador do estado, Paulo Câmara, incluiu em um eixo dedicado à “proteção e emancipação social, garantia de direitos e políticas específicas” um tópico em “defesa dos direitos, atenção específica e condições para inclusão socioeconômica da população LGBTQIA+”. A proposta, porém, é genérica e não explica quais serão as ações efetivas.
Já Raquel Lyra, ex-prefeita de Caruaru, no Agreste pernambucano, reconhece em seu programa de campanha que pessoas vítimas de preconceito “simplesmente por serem quem são” sofrem com “a exclusão social e o ultraje da violência”, mas não propõe qualquer projeto de reverter a essa realidade.
Os candidatos Anderson Ferreira, correligionário do presidente Jair Bolsonaro, e Miguel Coelho, excluíram completamente LGBTI+ das suas propostas de gestão.
Dos 10 postulantes ao cargo de chefe do Executivo de Pernambuco, seis não passaram de 1% na pesquisa do Ipec. Desses candidatos, três têm propostas diretas para a população LGBTI+ do estado: Claudia Ribeiro (PSTU), João Arnaldo (PSOL) e Jones Manoel (PCB), principalmente nas áreas de educação, saúde e segurança. Embora reconheça a necessidade de enfrentar “divisões” e “preconceito”, o pastor Wellington (PTB) não cita qualquer plano para isso. Jadilson Bombeiro (PMB) e Ubiracy Olímpio (PCO) ignoraram completamente a pauta.
Entre todas as candidaduras ao governo de Pernambuco, a campanha de Jones Manoel é a que mais tem propostas para lésbicas, gays, bissexuais, trans, travestis e intersexo: são quase oito páginas de programa dedicadas a essa população, no tópico intitulado “Programa LGBTQ+”.
Dentre as 19 propostas do representante do Partido Comunista Brasileiro, estão criar casa de atenção integral a travestis e pessoas trans, com espaços formativos para empregabilidade, seguindo modelo da carta-proposta da RATTs, com assistência financeira por tempo de atividade dentro da casa; aprovar lei de cota de trabalho trans e travesti no setor público; promover campanhas de conscientização e educação sexual; ampliar programas de saúde no SUS; criar conselho popular LGBTI+ dentro da Secretaria de Saúde, composto pela própria população, além de questões de acolhimento, atenção psicossocial, formação, geração de estatísticas, entre outras.
“Precisamos de pertencimento”
“Estamos fartas de inclusão, precisamos de pertencimento”. A afirmação é de Caia Maria, conselheira estadual dos direitos da população LGBT em Pernambuco. “A grande diferença entre as duas coisas é que, no pertencimento, nós não somos apenas ouvidas. Nós queremos estabelecer um diálogo político, com resultado concreto das nossas falas, com respostas”, explica ela, que é articuladora política e vice-coordenadora da Nova Associação de Travestis e Pessoas Trans de Pernambuco (Natrape) e também faz parte da Rede Autônoma de Travestis e pessoas Trans de Pernambuco (RATTs-PE).
Caia concorda que a falta de aprofundamento das pautas LGBTI+ nos planos de governo tem a ver com o cenário político atual no Brasil, uma vez que candidatos e candidatas estão precisando conquistar votos de grupos mais conservadores. “Que concessões são necessárias fazer para o conservadorismo e para as igrejas evangélicas em nome de uma eleição?”, questiona.
E mais: será que o recorde de candidaturas de pessoas trans nestas eleições acontece por causa do reacionarismo bolsonarista ou apesar dele?, provoca Caia novamente. Ela comenta que a resistência a Bolsonaro também acontece através de outras formas de organização política e que é preciso introjetar que as pessoas trans possam trabalhar politicamente sem esse cenário. “Qual é realmente o cenário estimulante para essas candidaturas? É o cenário conservador? Eu acredito que não, acredito que o cenário estimulante deve ser um menos conservador, com uma esquerda progressista e realmente aliada, que faça um debate qualificado. O que está acontecendo agora não é exatamente uma proliferação de candidaturas trans, é uma aposta radical na ocupação da institucionalidade”, reflete.
Na avaliação de Caia, há algum tempo, a esquerda cisgênera e alguns espaços de discussão, inclusive de parte do movimento LGBTI, se veem, de certa forma, “imunes a todas as críticas ao conservadorismo”. E isso, diz ela, repercute em candidaturas de um modo geral. Ao mesmo tempo em que a agenda política LGBTI tem se tornado um coletivo de pautas incontornáveis e isso tem levado candidaturas e as próprias pessoas que constroem internamente as candidaturas e os partidos a olhar para essas vidas, isso tem acontecido de uma maneira ainda muito pouco sofisticada. “É uma inclusão que acontece muito de uma maneira meramente formal”, define.
Nesse ponto, Caia toca na preocupação com a revisão do vocabulário político, da gramática política e das referências utilizadas, uma vez que isso significa um comprometimento com a qualidade do debate. Nestas e nas últimas eleições, observou-se uma “salada” de siglas. Muitas campanhas inserem a maior quantidade possível de letras como se isso fosse sinônimo de inclusão. Mas muita gente talvez nem saiba o significado de todas as letras. E pior: nem sempre as candidaturas têm propostas para as pessoas representadas pelas letras que usam.
“Algumas identidades estão sendo instrumentalizadas em nome de uma inclusão falsa, porque essa inclusão não aparece nos programas políticos”, reforça Caia, lembrando que, inclusive, não identidades estão sendo tratadas como identidades, como é o caso queer, que baseia a letra “Q” na sigla LGBTQI+. Além disso, pouco ou nada se fala sobre as pautas da transmasculinidade dentro das casas legislativas e dos executivos, incluindo os debates sobre aborto e a ocupação dos espaços de poder e decisão.
Em relação à sigla do movimento, Caia, que usa LGBTI (sem o mais), demonstra uma preocupação com a desorganização política e também a falta de conferências nacionais, que pactuam essa questão e tantas outras e funcionam como referenciais. As últimas conferências aconteceram em 2016, quando ficou definido o uso da sigla LGBTI. Desde então, não houve mais eventos. O último não aconteceu por causa da pandemia de covid-19. “Um novo governo Lula deve ter como demanda prioritária da população LGBTI a realização de uma nova conferência”, diz. Sobre o “+”, ela comenta que não gostaria de ser referenciada dessa forma, portanto o não utiliza.
Para o representante da ONG Leões do Norte Welington Medeiros, as pautas LGBTI+, quando tratadas nos planos de governo, apareceram de forma “muito genérica, sem intimidade nem profundidade”. “As pessoas parece que não sabem o que está acontecendo e as assessorias, que não se inteiram, não conhecem”, comenta.
“Talvez isso seja também porque os cargos que as pessoas ocupam na Prefeitura do Recife e no Governo do Estado não são militantes, não têm inserção na militância. É uma pauta que não tem muita mudança. Isso também se deve ao fato de não haver verba”, complementa, citando o caso do Centro de Referência LGBT, hoje Centro Estadual de Combate à Homofobia (CECH).
Na avaliação de Welington, é preciso ir além da questão do preconceito. Pautar, por exemplo, a descentralização dos serviços e das políticas públicas de olho no interior do Estado, a renda e empregabilidade – o que inclui dialogar com empresários e comerciantes, sobretudo para colocar as pessoas trans e travestis no mercado. Além disso, ele cita a violência, o atendimento à saúde, a qualificação do debate na mídia e como os temas são tratados nas escolas. “Há muitas especificidades que precisam ser discutidas”, reforça.
“Quantas vezes o governo estadual recebeu a população LGBTI+?, questiona Welington. “A pauta do segmento não pode servir para negociação com a ala conservadora política do Estado, não podemos ser essa moeda.”
Na semana passada, a ONG Leões do Norte cancelou o debate que faria com candidatos ao governo de Pernambuco, porque nenhum dos concorrentes convidados confirmou presença.
Em 2021, Pernambuco teve 735 casos de violência contra LGBTI+, entre crimes de lesão corporal, homicídio e estupro, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Foram 131 registros a mais em comparação com 2020.
Em setembro do ano passado, a Diadorim e a Marco Zero revelaram que o estado vive um apagão nas políticas de combate à LGBTIfobia. Com apoio metodológico da Plataforma Justa, a reportagem apurou que desde 2018 os orçamentos da gestão Paulo Câmara (PSB) destinados a essa população foram esvaziados ou contingenciados. Situação que, segundo especialistas, resultou em uma “onda de ataques transfóbicos”.