Assembleia de São Paulo barra projeto que proibiria publicidade com LGBTIs
PL 504/2020, que associa diversidade sexual a “inadequada influência na formação de jovens e crianças”, volta a ser analisado nas comissões da Alesp
A Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) derrubou, nesta quarta-feira (28), o Projeto de Lei 504/2020, que pretende proibir publicidade com alusão à diversidade sexual e de gênero no estado. Foram 26 assinaturas favoráveis à emenda proposta pela deputada estadual Erica Malunguinho (Psol). Com esse resultado na votação, o texto da deputada estadual Marta Costa (PSD) volta a ser analisado nas comissões da casa.
Sob argumento de que causam “desconforto emocional a inúmeras famílias” e “inadequada influência na formação de jovens e crianças”, o PL é uma ferramenta de censura a campanhas publicitárias que tenham personagens ou histórias de pessoas LGBTI+.
A proposta foi publicada em agosto do ano passado, e em seguida recebeu uma emenda da deputada estadual Janaína Paschoal (PSL) para correção do termo “preferências sexuais”, como estava na redação original, por “gênero e orientação sexual”.
Em entrevista à Folha de S.Paulo, Paschoal disse que o intuito é “proteger as crianças de uma sensualização precoce e eu compreendo, pois, a cada dia, fala-se mais precocemente na transição de crianças e adolescentes, com todos os impactos deletérios à saúde”.
No último dia 20 de abril, em vídeo postado nas suas redes sociais, Marta Costa pediu aos seus apoiadores oração e divulgação do projeto. “Deixa a criança ser criança”, frisou. “O que pretendo, com apoio que tenho da frente evangélica e de muitos outros deputados, é proteger a criança para que ela tenha uma infância saudável. Criança deve ser e agir como criança.”
Marta Costa é filha do pastor José Wellington Bezerra da Costa, um dos líderes da Assembleia de Deus e apoiador do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), e foi escolhida pela própria igreja da qual também é membro para seguir carreira política. Ela deixou a carreira de fiscal no Tribunal de Contas de São Paulo para se candidatar a vereadora da capital paulista, em 2004, pelo PTB, eleita com quase 36 mil votos, e se reelegeu por mais dois mandatos seguidos (em 2008 pelo DEM, e em 2012 pelo PSD).
Em 2014, Costa foi novamente escolhida pelos membros da Assembleia de Deus para ser a candidata da igreja ao cargo de deputada federal de São Paulo. Ela foi eleita com mais de 101 mil votos, e reeleita em 2018. No ano passado, a deputada concorreu à prefeitura da cidade como vice de Andrea Matarazzo (PSD), mas ficou em oitavo lugar, com 82.700 votos.
Na Alesp, uma das principais opositoras à aprovação do projeto de lei foi Erica Malunguinho (PSOL), que lançou campanha nas redes sociais para denunciar as ameaças do PL aos direitos conquistados pela população LGBTI+. Centenas de pessoas aderiram ao movimento, com postagens usando as expressões #LGBTNãoÉMáInfluência e #RespeitaAHumanidadeLGBT, além de agências de publicidade e marcas brasileiras que apoiam a diversidade.
Nas redes sociais, Malunguinho comemorou o resultado, que atribui à grande mobilização das pessoas, organizações e empresas. “Em minha emenda, faço uma mudança estrutural no teor do PL, mudando o artigo 1º para vetar, em todo o território do estado de São Paulo, a publicidade, por intermédio de qualquer veículo de comunicação e mídia, ‘de material que contenha alusão a drogas, sexo e violências explícitas relacionada a crianças’”, explica.
Inspiração
O projeto da deputada Marta Costa é inspirado em leis de outros países que utilizam a proteção às crianças e adolescentes como justificativa para medidas de restrição à liberdade de manifestação e organização de LGBTIs, como explica o advogado Paulo Malvezzi, em análise publicada na Agência Diadorim.
“Na Rússia, uma lei federal aprovada em 2013 contra ‘propaganda de relações sexuais não tradicionais’ resultou na perseguição de diversos ativistas, como no caso de Yulja Tsvetkova, punida por publicar desenhos de famílias não heteronormativas”, conta Malvezzi.
Para o advogado, a proposta “desumaniza a população LGBTI+ e estabelece uma discriminação inaceitável ao classificar nossas vivências e expressões sexuais como socialmente danosas ou problemáticas”. Segundo Paulo Malvezzi, “o principal foco dessa lei é amordaçar as iniciativas de pressão política (o chamado “advocacy”), educação sexual e as lutas por diversidade e representação, que vêm ganhando cada vez mais espaço na sociedade, especialmente na mídia e na produção cultural”.
De acordo com um parecer técnico-jurídico da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da OAB-SP, o projeto de lei é inconstitucional. Na análise do texto proposto, a entidade explica que além de violar “direitos fundamentais e humanos” e o “ interesse público, tendo em vista que desconsidera a existência de crianças e adolescentes LGBTI+”, “somente a União tem competência para regular questões relacionadas à publicidade e propaganda”.
O Brasil tem o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar), responsável pela fiscalização da publicidade.
Censura
Para o sócio fundador da consultoria Mais Diversidade, Ricardo Sales, que orienta empresas sobre inclusão e representatividade, “a publicidade ajuda a moldar o imaginário de um país e pode colaborar (ou não) com representações mais positivas e menos estereotipadas” e o PL 504/2020 se iguala a propostas de “algumas ditaduras do mundo”.
“Nos últimos anos, o meio empresarial brasileiro avançou na pauta de diversidade e inclusão. Ainda falta muito a ser feito, mas algumas organizações deram passos importantes rumo a uma sociedade equitativa e com oportunidades mais bem distribuídas. Neste contexto, a comunicação tem um papel fundamental”, afirma Sales. Para ele, embora a lei proposta seja “indiscutivelmente inconstitucional”, o fato de ela estar em discussão “já acende um alerta” sobre pautas conservadoras semelhantes.
Na terça-feira, o presidente da Associação Brasileira de Agências de Publicidade (Abap), Mario D’Andrea, divulgou uma nota de repúdio ao PL 504/2020, afirmando que o projeto “pretende se impor discriminação à liberdade de expressão comercial e ao direito de orientação sexual”.
“É importante destacar que a publicidade reflete a sociedade em que está inserida, e a vedação proposta pelo PL caracteriza-se por censura de conteúdo, abrindo um precedente perigosíssimo para a liberdade de expressão e aos direitos de minorias”, diz D’Andrea. “A publicidade brasileira é – e sempre será – fiadora da liberdade de expressão e dos direitos individuais no país.”