Foto: Tomaz Alencar/Diadorim
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Redes sociais e ‘pink money’: O que as empresas efetivamente estão fazendo por LGBTIs?

Engajamento de marcas contra projeto de lei e com campanhas no mês do orgulho LGBTI+ abre debate sobre compromisso com direitos e benefícios do “pink money”

Muitas empresas e instituições aderem à publicação maciça de postagens em internet e ações de marketing voltadas para a diversidade, em junho, mês do Orgulho LGBTI+, além de incluírem o arco-íris na foto de perfil nas redes sociais. Mas neste ano, de uma forma inesperada, em abril, grandes corporações se adiantaram na temática pró-diversidade em campanha forte no ambiente virtual, usando a hashtag #LGBTNãoÉMáInfluência.

A mobilização foi em repúdio ao projeto de lei 504/2020 da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), proposto pela deputada estadual Marta Costa, que pretendia proibir publicidade com alusão a diversidade sexual e de gênero, no estado. De acordo com um parecer técnico-jurídico da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da OAB-SP, o projeto era inconstitucional, porque violava “direitos fundamentais e humanos” e o “interesse público, tendo em vista que desconsidera a existência de crianças e adolescentes LGBTI+”.

Após pressão externa, o PL foi barrado em votação na Alesp. Vinte e seis parlamentares assinaram uma emenda proposta pela deputada estadual Erica Malunguinho (Psol), que fez o texto original voltar para análise nas comissões da casa.

Segundo levantamento da consultoria Mais Diversidade, pelo menos 69 grandes empresas se posicionaram de forma contrária ao projeto de lei, nos primeiros dias do movimento. Em todo o período, estimam-se que mais de 800 companhias divulgaram ações, entre elas, importantes organizações de setores alimentício, bebidas, moda e cosmético.

Nesse caso, a pressão das marcas abriu um precedente histórico de organização do mundo corporativo brasileiro contra uma possível medida LGBTfóbica. No entanto, apesar da inegável importância desse apoio, a mobilização também levantou a dúvida de quanto de “pink money” e de efetivas mudanças no mundo corporativo existem nesses posicionamentos.

Para entender as diferentes cores desse arco-íris, a Agência Diadorim conversou com especialistas do mercado, ativistas da comunidade LGBTI+ e historiadores, além de representantes das empresas.

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A importância e os limites da propaganda

“A partir do momento que o CEO autorizou publicar [a campanha de apoio à diversidade], já é uma luz no final do túnel, e não é mais o trem. É algo importante, porque mostra para a sociedade que não existe mais espaço para a exclusão, para descriminação, para o ódio”, reflete Toni Reis, diretor presidente da Aliança Nacional LGBTI+ e pós-doutor em Educação pela UFPR (Universidade Federal do Paraná). “Com 37 anos de luta pelos direitos humanos, fiquei emocionado em ver a relação das empresas, as logomarcas [envolvidas na campanha contra o projeto de lei]. Claro que cada um tem os seus interesses e, aí, não serei eu que vou julgar se essa ou aquela é oportunista”, pondera.

Na opinião de Reis, por mais que não existam dados oficiais sobre LGBTIs no Brasil e perguntas relacionadas a orientação sexual e identidade de gênero não estejam incluídas no Censo Demográfico do IBGE, uma parcela significativa das pessoas se identifica como membro dessa população, e esses indivíduos merecem ser representados. “Tanto na publicidade quanto em posts e campanhas nas redes sociais das empresa, é importante, sim, que a gente apareça. Da mesma forma, têm que aparecer os 50% de negras e negros, os 50% de mulheres. É muito importante nos vermos na publicidade, nas propagandas e nos produtos”, defende ele.

Professor de Direito da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e ativista, Renan Quinalha pontua que “a propaganda pode ser positiva para alguns membros, ou seja, para quem consegue assumir esse status de consumidor”. “É possível que uma parte da comunidade gaste seu ‘pink money’, mas isso não vai atingir de maneira igualitária todas as pessoas por conta das desigualdades internas da comunidade”, lembra Quinalha,

Para o professor, a interseccionalidade é fundamental nesse contexto. “O mercado não vai abraçar todas as pessoas LGBTI+ e não vai ser o meio de mudança e de promoção de direitos para toda a comunidade. Ele pode garantir cidadania pelo consumo para alguns setores específicos, mas quem não tiver dinheiro não vai acessar esses bens no mercado”, explica. A mesma relação é válida para a propaganda.

A publicidade, porém, não é a única inclusão que a comunidade espera, acrescenta Toni Reis. “É necessário que as empresas contratem também, mas que haja uma mudança de cultura interna na empresa, desde a pessoa que faz a limpeza, aquela que cuida da da segurança até o CEO. É importante que todos respeitem a diversidade na essência.”

“Os avanços, entretanto, não acontecem na velocidade que a gente precisa e também não chegaram na mesma profundidade para todo mundo da nossa comunidade”, afirma Ricardo Sales, sócio-fundador da Mais Diversidade e pesquisador da USP (Universidade de São Paulo). “Ainda não conquistamos uma inclusão que considere um olhar interseccional, então temos desafios importantes sobre a inclusão de LGBTI+ com deficiência e negras e negros, por exemplo. Outro desafio muito grande está voltado para a inclusão de pessoas trans”, comenta.

Afinal, o que é ‘pink money’?

Literalmente, ‘pink money’ é o ‘dinheiro cor-de-rosa’. “Cor-de-rosa que é usada, tradicionalmente, para representar o universo feminino e dos homossexuais. A expressão define, então, a capacidade de consumo, no mercado, das pessoas LGBTI+”, explica Renan Quinalha, sobre o termo de origem norte-americana. Cunhado nos anos 1970, a expressão mercadológica focava em “uma parcela mais rica da comunidade, de homens gays brancos cis-gêneros, que tinham uma maior passabilidade, digamos, na sociedade e que conseguiam acessar espaços de poder, de educação e de cultura”, acrescenta o professor.

Além de “discretas”, essas pessoas não gastavam dinheiro com família — naquela época, nem adoção nem casamento eram permitidos —, o que gerava esse “excedente econômico cor-de-rosa”, observa Quinalha. É a inclusão pelo consumo. Em outras palavras, são as empresas interessadas no poder de compra de um novo e atrativo público consumidor, e, para isso, investem em algumas concessões, como produtos específicos ou propagandas.

No Brasil, a relação entre o mercado e a comunidade LGBTI+ é vislumbrada sobretudo a partir dos anos 1990, começa a engrenar nos anos 2000 e se consolida nos anos 2010. De dentro do movimento, “em 1980, não se falava absolutamente nada. Não tenho conhecimento nenhum. Em 1990, tínhamos um horror a empresas. Quando a gente falava em horror, falava em capitalismo. Éramos todos socialistas, comunistas e não queríamos nem saber do capital”, lembra Toni Reis sobre os primeiros anos de ativismo.

Antes da aproximação com diferentes setores do mercado e de forma paralela aos movimentos anticapitalistas, a comunidade foi também influenciada pela noite de grandes capitais e os seus estabelecimentos comerciais, como conta o pesquisador Alexandre Martins, mestre em Sociologia pela USP e estudioso do movimento LGBTI+. “Desde os anos 1970, no Rio de Janeiro e em São Paulo, havia espaços — bares e festas — de sociabilidade e que tinham, ali, pessoas que também eram homossexuais, que eram donas desses estabelecimentos e que promoviam eventos ligados à sexualidade não normativa”, explica.

Parada de São Paulo reúne, a cada edição, mais de 3 milhões de pessoas. Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

A partir do final dos anos 1990 e no começo dos anos 2000, o cenário começou a mudar, com uma proliferação de novos nichos de mercado para a diversidade sexual e de gênero. “Naquele momento, se cunhou um termo, no Brasil, que era GLS [Gays Lésbicas e Simpatizantes]. É um termo criado pelo mercado para tentar dar conta desse público, em diferentes tipos de produtos e serviços, desde hotéis, baladas, saunas, petshops, livrarias”, conta Martins.

Já nos anos 2000, essas empresas garantiram uma participação, cada vez maior, em eventos como a Parada do Orgulho Gay de São Paulo (primeiro nome do evento, que hoje se chama Parada do Orgulho LGBT de São Paulo). Naquele momento, ocorreu um boom gigantesco no movimento LGBTI+. Vale lembrar que, nas primeiras edições, a parada paulista era pequena, sem patrocínio de empresas e com alguns ativistas fazendo manifestação. Em muitas situações no decorrer dos anos, a comunidade e as empresas viveram uma simbiose e, nos últimos anos, o aporte de grandes corporações internacionais pendeu ainda mais a balança para o capital.

Para alguns subgrupos dentro da comunidade, talvez a questão da diversidade já apareça superada, porque gozam de muitas liberdades construídas em anos de luta por todos. “Há o risco de que apenas quem tem acesso, quem pode comprar esses símbolos ligados à diversidade sexual e de gênero, quem pode ter dinheiro para entrar nos eventos em que a comunidade LGBT vai se reunir, seja incluído”, aponta Martins sobre a questão socioeconômica como validadora. “Isso acaba restringindo as possibilidades de circulação para LGBTs pobres, negras, periféricas, que não vão ter as mesmas condições de acesso”, completa.

O poder econômico e as pautas da comunidade LGBTI+

Ainda de acordo com Alexandre Martins, parte significativa das transformações que ocorreram nas últimas décadas pode ser entendida como neoliberal. “Uma das manifestações disso é aproximação de setores do movimento LGBTI+ de diversas organizações com várias empresas que têm pautas e discursos pró-diversidade sexual e de gênero”, aponta o pesquisador.

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Por mais benefícios que essa relação possa ter proporcionado, há alguns riscos para a comunidade LGBTI+. Risco de ter a causa da inclusão apropriada por empresas que não estão, de fato, comprometidas com a diversidade. Há “empresas que tentam se vender como sendo pró-direitos humanos por meio de associações a símbolos ligados ao movimento [LGBTI+]”, frisa o sociólogo. Nesses casos, as ações pró-diversidade seriam apenas uma fachada que esconde “políticas que super exploram os trabalhadores e completamente contra os direitos humanos e trabalhistas”, diz. Essa situação é conhecida como ‘pinkwashing’, algo como lavar de rosa as violações e o modo como essas empresas realmente operam.

Outro risco é que o discurso ativista e político pode acabar sendo moldado de uma maneira confortável para essas empresas, destaca Alexandre Martins. Atualmente, afirma ele, “a promoção da diversidade está muito ligada ao modo neoliberal de pensar, de que todos somos diferentes e de que todo mundo é diferente à sua própria maneira. É um jeito muito fácil de empresas utilizarem esse discurso e serem pró-diversidade”. Assim, o movimento perde o caráter de luta contra a opressão, pode reproduzir diferentes níveis de desigualdade e o discurso acaba sendo enquadrado dentro daquilo que é mais interessante para a empresa.

Por tudo isso, “quando se questiona as relações do movimento LGBTI+ com grandes empresas, isso não é uma crítica a pessoas individuais que conseguem contratos de trabalho e que conseguem um salário para seguir vivendo. É uma crítica pensando em estratégias ativistas e em termos de processo político e riscos intrínsecos a determinados tipos de alianças com o mercado”, completa.

A hashtag virtual versus a empregabilidade real

A mobilização de empresas contra o PL 504/2020, para o fundador da Mais Diversidade, Ricardo Sales, foi “um momento histórico, porque as organizações, de forma geral, evitam a todo custo se posicionar na política partidária”. Além disso, em uma sociedade capitalista, “o meio empresarial é um agente importante na defesa da democracia”.

Em outras palavras, “as empresas, que são muito cautelosas na maior parte das vezes, decidiram aderir a esse movimento, entendendo que estamos falando de algo muito mais amplo. Estamos falando de diversidade como algo que é central para defesa da democracia”, completa Sales. Neste caso e em outras situações pró-diversidade, “a comunicação tem que ser feita, mas idealmente como algo que repercute as transformações que a empresa já fez, está fazendo ou se compromete a fazer”, pontua.

Em agosto de 2014, foi lançado o site TransEmpregos — um portal para vagas e currículos de pessoas trans. Mas durante o primeiro ano de atuação, apenas uma contratação ocorreu. Nesse caso, uma pessoa foi contratada para trabalhar em um motel, como arrumadeira. Gradualmente, multinacionais começaram a se envolver com o projeto, depois entraram empresas brasileiras e, hoje, são mais de 950 organizações que participam do projeto. Somente em 2020, o número de contratações chegou a 707.

O preconceito costuma ser a maior barreira a ser superada pelas pessoas trans que querem preencher vagas de trabalho. “Na hora da entrevista com o RH, às vezes o nome não condiz com a imagem. A pessoa tem uma imagem masculina e um nome feminino ou vice-versa. Aí a contratação não é feita por preconceito”, explica Márcia Rocha, fundadora da TransEmpregos e advogada integrante da Comissão Especial da Diversidade Sexual da OAB-SP. “Essa pessoa é extremamente capaz. A transgeneridade não impede o trabalho, não atrapalha em nada o desenvolvimento e o aprendizado”, reforça Rocha.

Durante os 7 anos da iniciativa, a advogada explica que “o trabalho é levar informação, mostrar que pessoas trans são capazes, justamente para romper esse preconceito. Dessa forma, a situação está mudando, de verdade”. Ela acredita que, nos próximos 10 ou 15 anos, é possível que existam mais CEOs que também sejam trans. Isso porque, acredita, “os jovens que estão entrando [no mercado] hoje, com plano de carreira, poderão subir dentro da empresa e chegar a atingir cargos muito altos, mas ainda é cedo. É um processo longo, demorado”.

Atualmente, dois grandes setores são importantes para essa contratação: o telemarketing e o varejo. “As empresas que mais contratam, claro, são da área de telemarketing. Desde o início, já contratavam, porque são empresas onde as pessoas não têm tanto contato com o público”, explica Rocha. Por outro lado, há o varejo, e este é um setor que exige contato direto com o público, em que os trabalhadores podem atuar de caixas de supermercado até gerentes. Em menor escala, já começam a aparecer vagas para outros perfis profissionais.

Vale lembrar que não basta a contratação, as empresas precisam também rever protocolos internos e garantir um ambiente saudável de trabalho. Uma pesquisa feita na América Latina em 2020, liderada no Brasil pela Integra Diversidade, avaliou questões de assédio, violência e discriminação de pessoas LGTBTI+ no ambiente de trabalho. O estudo apontou que, no último ano, 74% dos respondentes vivenciaram pelo menos um desses fatos discriminatórios enquanto trabalhava. Por outro lado, mais de 86% dos entrevistados não realizaram denúncias dos casos ou relataram a empresa, e entre os casos em que a denúncia foi feita, 66% não geraram resultados.

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